Introdução
Para início de conversa, é importante esclarecer que esta análise não abrange as apostas esportivas, uma vez que essas já foram regulamentadas pelo Governo Federal por meio da Lei nº 14.790/23. Essa norma trata das chamadas “apostas de quota fixa” – como são conhecidas as apostas lotéricas em eventos esportivos – e determina que as casas de apostas só podem operar no país mediante autorização prévia do Ministério da Fazenda.
Por outro lado, outras formas de jogo, como cassinos, bingos, caça-níqueis e jogos de azar em geral, continuam sendo consideradas ilegais no Brasil. Entre essas modalidades está o popular “Jogo do Tigrinho” (Fortune Tiger), amplamente explorado por plataformas estrangeiras que atuam sem autorização nem regulamentação oficial. A legislação vigente mantém a proibição dessas práticas, destacando a necessidade de fiscalização intensiva e combate às operações clandestinas.
Neste contexto, o termo “jogos de azar”, ao longo deste texto, refere-se exclusivamente às atividades que não contam com regulamentação legal no Brasil.
Prática de Jogos de Azar e Embriaguez Habitual: Um Paralelo
A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), em seu artigo 482, alínea “l”, estabelece que a prática habitual de jogos de azar pode ser considerada motivo para dispensa por justa causa. Essa disposição legal permite ao empregador rescindir o contrato de trabalho caso o empregado esteja envolvido, de forma reiterada, com esse tipo de conduta.
A mesma CLT, em sua alínea “f” do mesmo artigo, trata da embriaguez habitual ou em serviço, que também pode justificar a demissão por justa causa. No entanto, com o avanço da compreensão sobre a dependência alcoólica como doença de saúde pública, a interpretação jurídica tem mudado. Hoje, o alcoolismo é reconhecido pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como Síndrome de Dependência do Álcool (CID F10.2), e o entendimento consolidado do Tribunal Superior do Trabalho (TST) é de que a embriaguez habitual não deve mais, isoladamente, ensejar justa causa, sendo necessário oferecer tratamento e apoio médico ao trabalhador.
Seguindo essa lógica, é importante observar que o vício em jogos de azar também é classificado como uma doença pela OMS. No CID-10, aparece como jogo patológico (F63.0) ou mania por apostas (Z72.6). Já no CID-11, o vício em jogos eletrônicos aparece como Distúrbio de Games, popularmente conhecido como ludopatia, e é caracterizado pelo “desejo incontrolável de continuar jogando”.
A crescente disseminação de aplicativos de jogos de azar tem amplificado os efeitos negativos associados a essa prática, como perda de patrimônio, esgotamento das economias familiares e, em casos extremos, pensamentos suicidas. A facilidade de acesso por dispositivos móveis tem contribuído significativamente para o aumento dos casos de dependência.
Desafios nas Relações de Trabalho
No ambiente corporativo, o uso de celulares para acessar jogos de azar apresenta um desafio adicional para os empregadores. Diferente da embriaguez, que pode ser identificada por sinais físicos como sonolência, reflexos lentos ou odor de álcool, o envolvimento com jogos virtuais é muito mais discreto e difícil de detectar.
Além disso, é complicado medir o tempo gasto em jogos durante o expediente ou provar a habitualidade da prática, como exige o art. 482 da CLT. O simples uso excessivo do celular pode estar relacionado a diversas atividades, dificultando a responsabilização direta por jogos.
Jurisprudência e Tendências Futuras
A jurisprudência trabalhista ainda traz poucos precedentes sobre dispensas por justa causa associadas a jogos de azar. Uma busca no site do TST revela que, na maioria das decisões, os processos estão mais ligados a tentativas de reconhecimento de vínculo empregatício com estabelecimentos de jogos ilegais, do que à demissão de trabalhadores por envolvimento pessoal com apostas.
Nos Tribunais Regionais do Trabalho (TRTs), o cenário é semelhante: são escassas as decisões atuais sobre o tema. No entanto, com o avanço dos aplicativos de jogos e o crescimento do acesso digital, é previsível que a quantidade de litígios sobre esse assunto aumente nos próximos anos.
Conclusão e Desafios
O grande desafio para os empregadores será identificar, de forma clara e juridicamente segura, a conduta do empregado. Detectar o envolvimento com jogos de azar, comprovar a habitualidade e vincular isso à queda de desempenho ou desvio de conduta profissional são etapas difíceis de cumprir, principalmente diante da falta de parâmetros objetivos e ferramentas de monitoramento eficazes.
Diante disso, é fundamental que as empresas adotem políticas internas claras sobre o uso de celulares, aliadas a ações educativas que alertem os colaboradores sobre os riscos dos jogos de azar. O objetivo deve ser equilibrar a proteção ao trabalhador com a manutenção de um ambiente saudável e produtivo.
Pontos Relevantes para Reflexão
- Regulamentação: A ausência de uma legislação específica sobre jogos de azar no Brasil cria um vácuo legal que dificulta a fiscalização e o combate às práticas ilícitas.
- Saúde pública: Assim como a dependência alcoólica, a ludopatia deve ser tratada como um problema de saúde pública, com foco na prevenção, diagnóstico e tratamento adequado.
- Responsabilidade do empregador: Cabe às empresas desenvolver mecanismos para monitorar e orientar seus funcionários, assegurando que o uso de dispositivos móveis não prejudique o desempenho profissional nem o ambiente de trabalho.